Um olhar de conjunto
“Ó abismo da
riqueza, da sabedoria e da ciência de Deus! Como são insondáveis seus juízos e
impenetráveis seus caminhos!... Porque tudo é dele, por ele e para ele. A ele a
glória pelos séculos! Amém” (Rm 11, 33.36).
A expressão de
maravilha e de louvor por parte do apóstolo diante do mistério da aliança
irrevogável de Deus com Israel - aliança que vai além da sua infidelidade - e
do chamado dos pagãos a participarem da sua plena realização na morte e ressurreição
de Cristo, bem interpreta os sentidos mais profundos da Igreja ao celebrar o
solene Tríduo Pascal. Este evento Pascal é a fonte divina e perene da sua vida,
assim como do caminho espiritual desenvolvido ao longo do ano litúrgico. A
Igreja nos convida a entrar em atitude de maravilha e adoração.
O Tríduo
Sagrado inicia-se na tarde da quinta-feira santa, com a celebração da Ceia do
Senhor, e acaba com as segundas Vésperas do dia da Páscoa. A Igreja contempla
com fé e amor e celebra o mistério único e indivisível do seu Senhor Morto (Sexta-feira
santa), Sepultado (Sábado santo) e Ressuscitado (Vigília e dia de
Páscoa).
Com o Tríduo
Pascal chegamos ao coração da história inteira e ao escopo da própria criação.
A luz Pascal deste Santo Tríduo ilumina a vida de Jesus, sua missão desde seu
nascimento e o projecto salvífico de Deus no seu desenvolvimento histórico:
desde a criação e através das relações especiais da aliança com os patriarcas e
os profetas, testemunhadas pelo Antigo Testamento. Na morte e ressurreição de
Jesus e na efusão do Espírito, aquele projecto se revela em todo seu sentido
profundo, e inicia a etapa radicalmente nova desta história que caminha rumo a
seu cumprimento no fim dos tempos (cf. Ef 1,1-14; Cl 1, 15-20).
As pessoas que
foram regeneradas na fé e no amor pelo batismo receberam as potencialidades e a
vocação a viver como homens e mulheres “partícipes da vida do Ressuscitado”,
partilhando a mesma energia divina de Cristo no Espírito (cf. Ef 2, 4-8; Cl 3,
1-4: 5-11).
As celebrações
do Tríduo são particularmente ricas de gestos, movimentos, Palavra proclamada e
comentada, cantos, silêncios. Tudo converge para nos aproximarmos com coração
aberto e íntima devoção ao mistério da morte e da ressurreição de Cristo e da
nossa participação a ele, por graça. O que mais nos surpreende é descobrir,
mais uma vez, o amor gratuito com que Deus nos amou, e fica nos amando, até
doar seu próprio Filho por nós e nele doar-nos sua própria vida: “para que
todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna” (Jo 3, 16), como
nos lembra o evangelista. Surpreendidos ainda mais pelo feito que “não fomos
nós que amamos a Deus, mas foi ele quem nos amou e enviou-nos seu Filho como
vítima de expiação pelos nossos pecados” (1 Jo 4, 10).
O extremo
esvaziamento do Verbo encarnado, na morte de cruz e no silêncio do sepulcro,
abre o caminho para uma nova história, em prol de cada um e do mundo inteiro. “Baptizados
em Cristo Jesus, é na sua morte que fomos baptizados. Portanto pelo baptismo
nós fomos sepultados com ele na morte, para que, como Cristo foi ressuscitado
dentre os mortos pela glória do Pai, assim também nós vivamos vida nova” (Rm 6,
3-4).
Celebramos em
maneira indivisível a Páscoa pessoal de Jesus e a Páscoa de seu corpo vivo que
é a Igreja e cada um de nós, a caminho na esperança da renovação plena e
definitiva.
Os três dias do
Tríduo sagrado constituem a trama articulada e unitária do único e mesmo
mistério pascal de Jesus e da Igreja. Cada dia, com
a especificidade da sua linguagem ritual, põe a tônica sobre uma etapa ou
aspecto do caminho pascal de Jesus. A forma narrativa dos acontecimentos
destaca que a ação de Deus em Jesus se insere na realidade humana com suas
aberturas e resistências, até a dramática recusa do seu amor. Mas o amor de
Deus não se deixa vencer pelo mal e o pecado: “Antes da festa da páscoa,
sabendo Jesus que chegara a sua hora de passar deste mundo para o Pai, tendo
amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim” (Jo 13, 1).
Cada um dos
três dias nos proporciona a oportunidade de nos mergulharmos em diferentes
aspectos do mistério pascal. Por enquanto, achei mais conveniente oferecer ao
início algumas sugestões de caráter geral. Talvez elas possam ajudar a colocar
e viver cada celebração na visão unitária do mistério pascal, assim como a
Igreja o contempla e no-lo transmite através das celebrações. De cada dia irei
destacar um ou outro elemento, útil para evidenciar a continuidade interior do
Tríduo.
A Quinta-feira Santa
“Jesus... tendo
amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim”
A missa do Crisma, presidida na
manhã pelo bispo em sua catedral, com a participação do clero e do povo,
encerra a quaresma e prepara os Óleos santos finalizados à celebração da
iniciação cristã - especialmente durante a grande vigília pascal - e a da unção
dos enfermos. Os textos bíblicos (Is 61, 1-9; Ap 1,5-8; Lc 4, 16-21), assim
como as orações e o magnífico prefácio, destacam o sacerdócio de Jesus e
a participação do povo cristão ao sacerdócio dele no Espírito Santo, em
força do baptismo. É o coração do dom da Páscoa e da vida nova de todo o povo
de Deus.
A Ceia do Senhor, na tarde (Ex 12,
1-14; 1 Cor 11, 23-26; Jo 13, 1-15), abre o Tríduo, celebrando antecipadamente
na forma sacramental da eucaristia o dom do corpo e do sangue do Senhor, que a
Igreja guarda como memória viva e fonte inesgotável da sua vida no tempo. A
Igreja está certa de que “todas as vezes que celebramos este sacrifício em
memória do vosso Filho, torna-se presente a nossa redenção” (Oração sobre
as oferendas). O gesto de amor e de humildade com que Jesus, o Mestre e o
Senhor, lava os pés aos discípulos, determina o horizonte divino das relações
recíprocas entre os discípulos, e deles com qualquer pessoa, em toda situação e
em todo tempo. Cada sofrimento partilhado e cada gesto de solidariedade faz
Jesus lavar os pés e cumprir seu mandamento.
A Sexta-feira santa: celebração da Paixão do Senhor
No centro da celebração está o evento e
o mistério da cruz, proclamado nas Escrituras (Is 52,13-53,12; Jo
18,1-19,42), honrado com a adoração e o beijo da cruz por parte da a
assembleia, reconhecido como intercessão permanente junto do Pai (Oração
universal), interiorizado na comunhão. A cruz é tragédia em nível humano,
porém a fé a proclama como revelação suprema do amor de Jesus e início
da vida nova que dele brota.
Neste dia a Igreja fica concentrada
directamente sobre a contemplação silenciosa e adorante do evento da
crucifixão. Não celebra a memória sacramental da morte de Cristo com a Missa. A
cruz é o “eixo do mundo”, diziam os Padres da Igreja, pois nela se
manifesta o extremo compromisso de Deus em favor do mundo. Este amor divino é o
que sustenta o mundo.
O estilo de Deus é loucura para os homens
(cf. 1 Cor 3,18 -25), como o silêncio da morte ignominiosa na cruz.
Porém este silêncio se torna o grito mais alto que testemunha seu amor
sem limite.
O grito sofrido e confiante de Jesus, “Meu
Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” (Mc 15,34; Sal 21, 2),
assume em si mesmo o grito dos crucificados de todos os tempos, e abre para
eles a esperança, pois “por isso Deus o exaltou e lhe concedeu um título
(Kyrios- Senhor) que é superior a todo título”, e o fez raiz e modelo de
vida nova entre os irmãos (Fil 2, 6-9).
O perdão invocado sobre os algozes: “Pai,
perdoa-lhes: não sabem o que fazem” (Lc 23,34) e a entrega confiante ao
Pai: “Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito” (cf. Sal 31,6 - Lc
23,46), abrem caminho definitivo para a comunhão renovada com Deus, abolindo
todo impedimento ou outra mediação: “Jesus, porém, tornado a dar um grande
grito, entregou o espírito. Nisso, o véu do templo se rasgou em duas
partes, de cima a baixo, a terra tremeu e as rochas se fenderam” (Mt
27,50 -51).
A Igreja hoje se reveste do silêncio mais
do que de palavras. A celebração da Paixão se abre e acaba com a assembleia em
silêncio! Ela fica olhando intensamente o esposo e cruza seu olhar com o olhar
compassivo dele, que lhe transmite toda a força do seu amor. É do encontro
deste recíproco olhar no amor que nascem os namorados e as namoradas de Cristo,
os que chegam a doar a própria vida por ele e como ele.
Na sua fé a Igreja contempla o mistério da
cruz na sua integridade, deixando-se guiar pela visão teológica da Paixão
escrita por João. Ela faz da cruz o “evento de salvação”, da elevação violenta
de Jesus na cruz a sua glorificação, e do “crucificado” o “Senhor” que dá a
vida, derramando o Espírito criador (cf. Jo 19,30). A arte da Igreja, até o
séc. 13, teve a ousadia de representar Jesus crucificado, como o Vivente, o Rei
vitorioso e o Sacerdote do Pai. Do seu lado transpassado nasce o admirável
sacramento da Igreja (cf. Sacrosanctum Concilium, n. 5).
A religiosidade popular do Brasil,
herdeira da religiosidade popular de Portugal colonial, tem ainda dificuldade
de integrar a cruz na ressurreição. Deixando-se guiar pela liturgia, existe
bastante espaço para valorizar a sensibilidade do povo brasileiro para o Cristo
sofredor, tão próximo à sua história e, ao mesmo tempo, reconstruir a
integridade da boa nova libertadora de Jesus e do seu mistério pascal.
Sábado Santo: dia do silêncio de Deus e dos homens
O Sábado santo é o dia do grande silêncio.
Só a Liturgia das Horas acompanha as etapas do dia.
Um dia vazio ou, ao invés, um dia de
silêncio contemplativo e fecundo, de espera e de esperança, suscitada pela
gestação silenciosa da nova criatura no seio da terra e do coração de
Deus?
“Que está acontecendo hoje?”, se
pergunta o autor de uma antiga homilia sobre o sábado santo (séc. IV). “Um
grande silêncio reina sobre a terra. Um grande silêncio e uma grande solidão.
Um grande silêncio, porque o rei está dormindo; a terra estremeceu e ficou
silenciosa, porque o Deus feito homem adormeceu e acordou os que dormiam há
séculos.” (LH, IV, Sábado santo).
O Sábado santo testemunha que Deus
continua descendo até as entranhas mais obscuras e ambíguas da alma humana, e
nas experiências mais marginalizadas, para recuperá-las e trazê-las à vida.
Nada e ninguém é abandonado a si mesmo. Aprender a conviver com a “fraqueza” de
Deus, com os silêncios de Deus, com os tempos e os diferentes ritmos de Deus,
dos seus projectos, com a pedagogia com a qual ele nos dirige e acompanha com
amor fiel embora às vezes incompreensível. Eis a lição do Sábado santo. O
Sábado santo não é somente o segundo dia do tríduo: é uma dimensão constitutiva
da identidade cristã e de todo caminho espiritual cristão.
Para perceber e acolher a voz silenciosa
que sobe da escuridão, é preciso o silêncio interior que abre à escuta e à uma
visão mais aguda.
A grande Vigília da noite e o Domingo de Páscoa
A grande vigília da noite, junto com o dia
de Páscoa, constitui o cume do Tríduo sagrado e do caminho quaresmal.
São a noite e o dia destinados por sua
natureza a iniciar/introduzir os catecúmenos à fundamental relação
pessoal com Cristo através dos sacramentos da iniciação cristã. Com as
palavras dos profetas Oséias e Isaías (4a Leitura: Is 54,5-14), a
liturgia chama esta vigília de “noite das núpcias” de Cristo com a
Igreja. Ele a torna mãe fecunda, capaz de gerar novos filhos ao Senhor nas
águas maternais do baptismo. Santo Ambrósio, nas suas catequeses mistagógicas
sobre a iniciação cristã, descreve o encontro pessoal do neo-baptizado com
Cristo na eucaristia como o encontro apaixonado do amado com a amada do Cântico
dos Cânticos! [1]
É a noite-dia em que também os “fieis” são
chamados a renovar seu compromisso baptismal (renovação das promessas baptismais),
pois o baptismo é a fonte que alimenta toda experiência espiritual cristã.
A vigília se articula em quatro etapas
que bem representam o caminho da iniciação e o do progresso espiritual ao
longo da vida: liturgia da luz – liturgia da palavra – liturgia baptismal
– liturgia eucarística.
Quatro linguagens rituais para celebrar o
único mistério de Cristo morto e ressuscitado, Elas destacam a passagem do baptizado
de uma existência nas trevas e na morte do pecado para uma vida nova em Cristo,
para viver como ressuscitados.
- Liturgia da luz: Uma luz nasce de
repente no coração da noite. Do círio pascal, símbolo de Cristo, recebem
luz as velas de toda a assembleia que se põe a caminho. A reacção frente a
tamanho dom de Deus é o grito de alegria do “Exultet”, quase contraponto
ao grito sofrido da Sexta-feira santa e ao silêncio adorante do sábado.
- Liturgia da Palavra: As sete
leituras do AT e as duas do NT constituem a profunda contemplação das
etapas de toda a história da salvação, desde a criação do mundo, através
da história de Israel no AT, até à ressurreição de Jesus, e à proclamação que os
baptizados participam por graça à ela, iniciando o caminho do novo povo de
Deus (Rm 6,3-11). A vida espiritual do cristão é continuidade e realização da
mesma e única história da salvação, na espera do seu cumprimento com a vinda
gloriosa de Cristo.
- Liturgia baptismal: Constitui a
passagem forte da vigília pascal. É a meta da longa preparação quaresmal para
os catecúmenos, assim como para os já baptizados.
O processo de preparação – como vimos, ao
seguir a estrutura dos domingos da quaresma – destacou os variados horizontes e
exigências para entrar na experiência sacramental e de relação pessoal com
Cristo, e fazer desta relação a fonte e o critério de uma nova existência.
A renovação das promessas do baptismo por
parte de toda a assembleia abre estes horizontes, destaca estas exigências,
confirma esta graça.
- Liturgia eucarística. Partilhar o
corpo e o sangue do Senhor à mesa do altar é o dom supremo que os neo-baptizados
e os renovados na graça do baptismo vão receber do próprio Cristo ressuscitado.
Eles são introduzidos no mesmo dinamismo do Senhor. “Quando vai receber o
corpo de Cristo nas mãos – sublinha Santo Agostinho aos recém-baptizados
– e ouvis o sacerdote dizer “É o corpo de Cristo”, tu respondes “Amém”. Tu
recebes o corpo de Cristo, que sois vós”.
A nova existência alimentada pelo Espírito
do Ressuscitado é vivificada por um novo dinamismo que produz os frutos do
Espírito: alegria, paz, confiança filial, solidariedade fraterna.
O canto do Aleluia constitui o
emblema da Páscoa e da vida nova em Cristo. Brota da alegria da fé, se irradia
através da vida renovada, antecipa a plenitude da esperança: “A Paixão do
Senhor mostra-nos as dificuldades da vida presente, em que é preciso trabalhar,
sofrer e por fim morrer. A ressurreição e glorificação do Senhor nos revelam a
vida que um dia nos será dada... É isto o que todos nós exprimimos mutuamente
quando cantamos: Aleluia! Louvai o Senhor!... Mas louvai com todas as vossas
forças, isto é, louvai a Deus não só com a língua e a voz, mas também com a
vossa consciência, a vossa vida, as vossas acções. (S. Agostinho, Com.
Salmos, 148 1-2; 5a Semana do Tempo Pascal, Sábado LH II,
pg 779).
“Ó Deus, por vosso Filho unigénito, vencedor da morte, abristes hoje
para nós as portas da eternidade. Concedei que, celebrando a ressurreição do
Senhor, renovados pelo vosso Espírito, ressuscitemos na luz da vida nova”
(Domingo de Páscoa, Oração do dia).
Por e-mail (Pe. Anastácio Jorge ).
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