FÉ E VIDA MÍSTICA

14/02/2013 15h55 - Atualizado em 14/02/2013 15h55


No contexto do jubileu do Concilio Vaticano II ( 50 anos), do ano da fé e do Sínodo dos Bispos sobre a nova evangelização, é importante nos determos sobre o tema da mística, tendo em vista o revigoramento da nossa fé e do nosso ardor missionário. A vida mística nasce da fé e é sustentada pela oração e pela escuta da Palavra de Deus. A mística vai ao encontro de um dinamismo psíquico e espiritual do ser humano, ou seja, daquela fome e sede mais profundo que ele tem de dar sentido ou plenitude à sua existência.  Por sua vez, a fé é uma resposta a tal dinamismo visto que ela consiste no acolhimento e adesão total à pessoa de Jesus Cristo, através da sua Palavra, dos sacramentos e do amor a Deus e ao próximo.
A fé[1], juntamente com a esperança e a caridade, é  uma das virtudes teológicas, pois se trata de uma atitude que nasce na profundidade do coração humano, mas que é dom sobrenatural e fruto da ação do Espírito de Deus. Esta virtude tem a função de colocar a pessoa em relação imediata com Deus e é o fundamento da vida espiritual e cristã. Através da fé o ser humano pode abandonar-se confiante nas mãos de Deus e aderir totalmente ao seu projeto salvífico, que em Jesus Cristo tem a sua plena manifestação.
O termo “fé” deriva do latim fides ( fidelidade), que traduz o substantivo grego pistis (acreditar), o qual tem a sua raiz em dois verbos usados na escritura hebraica, aman e batah. Por sua vez, o termo aman (ser firme, sólido, verdadeiro) exprime uma relação pessoal com Deus, em quem podemos apostar ou ariscar nossa vida. Já o termo  batah serve para indicar a força dinâmica do nosso confiar ativamente em Deus, esperando confiante os seus bens visto que Ele não se esquece de nós (cf. Salmos 55.23; 56,4; 32,10). Assim, ter fé é abandonar-se sem reservas nos braços deste Deus, cuja fidelidade por nós e mais segura do que a nossa própria existência.
A mística[2], um dos principais temas da espiritualidade católica e cristã, foi compreendida de modo diverso e até controverso, ao longo da história da Igreja. Com o concilio Vaticano II, este tratado teve um novo impulso e passou a ser abordado com aquela originalidade do cristianismo primitivo. Segundo K. Rahner, a mística, é a palavra mais apropriada para definir a espiritualidade cristã; ela é caracterizada pelo predomínio da ação e do amor de Deus sobre a vida do ser humano; é um saber íntimo, secreto, profundo e experiencial que nasce de uma relação íntima e imediata com Deus. O mesmo Rahner já afirmava, no século passado, que “a nota primeira e mais importante, que deve caracterizar a espiritualidade do futuro é a relação pessoal e imediata com Deus... o cristão do futuro ou será um místico, isto é, uma pessoa que experimentou algo, ou não será um cristão”[3].
O termo “místico” esta ligado à palavra “mistério”. Ambas palavras estão em conexão com o verbo “fechar (do grego myein) e exprime o sentido daquilo que está escondido ou no segredo. Assim, Já no antigo Israel (AT) havia a concepção de que Deus (JHWH) morava para além do firmamento do céu, no segredo ou no mistério, com seus conselheiros, a assembléia dos santos e os exércitos celestes, e os seus desígnios eram revelados na terra aos seus amigos: os patriarcas e profetas. No Novo testamento, vemos o próprio Jesus a falar dos mistérios de Deus (os seus desígnios salvíficos e o seu Reino), que são revelados aos seus discípulos e aos simples-humildes ( Mc 4,11; Mt 11,25-27). E Jesus mesmo é a revelação de tais mistérios (Col 1,26-27). Nas cartas paulinas é muito freqüente o uso do termo mysterion. Aos Coríntios, Paulo escreve que ele e seus companheiros devem ser como “ministros de Cristo e administradores dos mistérios de Deus” (1Cor 4,1). Elemento importante destes mistérios é a vontade de Deus de que todos sejam salvos e Paulo se sentia portador destes mistérios (Ef 3,1-4).
     Na era patrística, o termo mysterion  continuou sendo fundamental e normalmente referia-se à pessoa de Jesus Cristo. Nos escritos dos Padres da Igreja, tanto os do Oriente como os do Ocidente, o mistério de Cristo, presente na Sagrada Escritura, nos sacramentos e na vida do cristão, teve sempre relevância. Na era medieval e moderna o mistério de Jesus Cristo foi compreendido e acolhido de modo diverso pelos santos místicos e pelos cristãos em geral, o que contribuiu para a diversidade da espiritualidade, na Igreja Católica. Porém, ao longo da historia da Igreja, surgiu também a distinção entre a vida mística, para alguns santos, e a vida cristã ordinária, para o povo de Deus.
Já na era contemporânea, no Concilio Vaticano II, com a chamada universal à santidade cristã (cf. Lumem Gentiun, cap. V, n.39-42), a distinção entre um caminho ordinário e outro místico (extraordinário) foi anulado. Tomas Merton, entre outros  espiritualistas, insistia muito sobre o “caminho contínuo” que todo cristão é  chamado a seguir, na vida espiritual. Ele dizia que “para alcançar uma verdadeira consciência de Deus e de nós mesmos, devemos renunciar ao nosso ser egoísta e limitado e entrar em uma espécie de existência totalmente nova, descobrindo um centro interior de motivação e de amor que nos permita de ver a nós mesmos e todas as coisas em uma luz totalmente nova. Chamá-la fé, chamá-la – em uma fase mais avançada – iluminação contemplativa, chamá-la sentido de Deus ou também união mística, tudo isso são aspectos e níveis diferentes da mesma espécie de realização: o despertar de uma nova consciência de nós mesmos em Cristo, criados n’Ele, redimidos por Ele, para sermos transformados e glorificados em e n’Ele”.[4] Em São Paulo, podemos encontrar esta mística que se expressa em uma nova consciência ou visão teológica ( cf. Ef. 1,3-14; Col. 1,1-20).
Em uma de suas orações, o cardeal J. H. Newman expressa aquilo que podemos considerar os frutos da fé e da vida mísitca: “Eu creio e sei que todas as coisas vivem em Ti. Tudo quanto existe no criado de ser, vida, perfeição, alegria, felicidade, é na sua substância, simplesmente e absolutamente teu. É imergindo-se no oceano da tua infinita perfeição que todos os seres portam quanto têm de bom. Tudo o que é maravilhoso quanto a talento ou gênio não é mais que um pálido reflexo do mais frágil raio da Mente Eterna. Tudo o que nós conseguimos fazer de bem não é devido somente à Tua ajuda, mas também à imitação daquela santidade que em Ti encontra a sua plenitude. Virá, meu Deus, o dia em que poderei ver-Te? Poderei ver a fonte daquela graça que me ilumina, me reforça e me consola? E, como tive origem de Ti, como sou criado de Ti, como vivo em Ti, possa eu enfim retornar a Ti, e permanecer contigo nos séculos dos séculos”[5]. Nesta perspectiva, pode-se afirmar que a fé e a mística caminham juntas; elas são nossas companheiras de viagem rumo à plenitude da vida, em Deus. Assim, podemos concluir dizendo que a fé fortalece a vida mística e vice-versa visto que através delas o cristão entra num processo de crescimento humano e espiritual integral (hic et nunc), guiado pelo Espírito Santo, que o conduz à união com a vida trinitária, já neste mundo, e o encaminha para plenitude do reino dos céus.

Padre Anisberto Bonfim, smbn


[1] Cf. FATULA M. A. Fede, in Nuovo Dizionario di Spiritualità, Libreria Editrice Vaticana, Cità del Vaticano 2003, 298-309.
[2] Cf. J. A. Wiseman, Mistica, idem, p.450-460.
[3] Cf. S. de Fiores, “La spiritualità come esperienza di Dio”, in Nuovo Dizionario di Spiritualità, Ed. Paoline, Roma 1999,1528
[4]  Cf. T. Merton, Contemplation in a World of action, Garden City [N.Y.] 1973, p.175-176).
[5] B. V. FERRER, Livro de oração de Newman, 1990,13.

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