No
contexto do jubileu do Concilio Vaticano II ( 50 anos), do ano da fé e do
Sínodo dos Bispos sobre a nova evangelização, é importante nos determos sobre o
tema da mística, tendo em vista o revigoramento da nossa fé e do nosso ardor
missionário. A vida mística nasce da fé e é sustentada pela oração e pela
escuta da Palavra de Deus. A mística vai ao encontro de um dinamismo psíquico e
espiritual do ser humano, ou seja, daquela fome e sede mais profundo que ele
tem de dar sentido ou plenitude à sua existência. Por sua vez, a fé é uma resposta a tal
dinamismo visto que ela consiste no acolhimento e adesão total à pessoa de
Jesus Cristo, através da sua Palavra, dos sacramentos e do amor a Deus e ao
próximo.
A fé[1],
juntamente com a esperança e a caridade, é
uma das virtudes teológicas, pois se trata de uma atitude que nasce na
profundidade do coração humano, mas que é dom sobrenatural e fruto da ação do
Espírito de Deus. Esta virtude tem a função de colocar a pessoa em relação
imediata com Deus e é o fundamento da vida espiritual e cristã. Através da fé o
ser humano pode abandonar-se confiante nas mãos de Deus e aderir totalmente ao
seu projeto salvífico, que em Jesus Cristo tem a sua plena manifestação.
O termo
“fé” deriva do latim fides (
fidelidade), que traduz o substantivo grego pistis
(acreditar), o qual tem a sua raiz em dois verbos usados na escritura hebraica,
aman e batah. Por sua vez, o termo aman
(ser firme, sólido, verdadeiro) exprime uma relação pessoal com Deus, em
quem podemos apostar ou ariscar nossa vida. Já o termo batah
serve para indicar a força dinâmica do nosso confiar ativamente em Deus,
esperando confiante os seus bens visto que Ele não se esquece de nós (cf. Salmos 55.23; 56,4; 32,10). Assim, ter
fé é abandonar-se sem reservas nos braços deste Deus, cuja fidelidade por nós e
mais segura do que a nossa própria existência.
A
mística[2], um
dos principais temas da espiritualidade católica e cristã, foi compreendida de
modo diverso e até controverso, ao longo da história da Igreja. Com o concilio
Vaticano II, este tratado teve um novo impulso e passou a ser abordado com
aquela originalidade do cristianismo primitivo. Segundo K. Rahner, a mística, é
a palavra mais apropriada para definir a espiritualidade cristã; ela é
caracterizada pelo predomínio da ação e do amor de Deus sobre a vida do ser
humano; é um saber íntimo, secreto, profundo e experiencial que nasce de uma
relação íntima e imediata com Deus. O mesmo Rahner já afirmava, no século
passado, que “a nota primeira e mais importante, que deve caracterizar a
espiritualidade do futuro é a relação pessoal e imediata com Deus... o cristão
do futuro ou será um místico, isto é, uma pessoa que experimentou algo, ou não
será um cristão”[3].
O termo
“místico” esta ligado à palavra “mistério”. Ambas palavras estão em
conexão com o verbo “fechar” (do
grego myein) e exprime o sentido
daquilo que está escondido ou no segredo. Assim, Já no antigo Israel (AT) havia
a concepção de que Deus (JHWH) morava para além do firmamento do céu, no
segredo ou no mistério, com seus conselheiros, a assembléia dos santos e os
exércitos celestes, e os seus desígnios eram revelados na terra aos seus
amigos: os patriarcas e profetas. No Novo testamento, vemos o próprio Jesus a
falar dos mistérios de Deus (os seus desígnios salvíficos e o seu Reino), que
são revelados aos seus discípulos e aos simples-humildes ( Mc 4,11; Mt 11,25-27). E
Jesus mesmo é a revelação de tais mistérios (Col 1,26-27). Nas cartas paulinas é muito freqüente o uso do termo mysterion. Aos Coríntios, Paulo escreve
que ele e seus companheiros devem ser como “ministros de Cristo e
administradores dos mistérios de Deus” (1Cor
4,1). Elemento importante destes mistérios é a vontade de Deus de que todos
sejam salvos e Paulo se sentia portador destes mistérios (Ef 3,1-4).
Na era patrística, o termo mysterion continuou sendo fundamental e normalmente
referia-se à pessoa de Jesus Cristo. Nos escritos dos Padres da Igreja, tanto
os do Oriente como os do Ocidente, o mistério de Cristo, presente na Sagrada
Escritura, nos sacramentos e na vida do cristão, teve sempre relevância. Na era
medieval e moderna o mistério de Jesus Cristo foi compreendido e acolhido de modo
diverso pelos santos místicos e pelos cristãos em geral, o que contribuiu para
a diversidade da espiritualidade, na Igreja Católica. Porém, ao longo da
historia da Igreja, surgiu também a distinção entre a vida mística, para alguns
santos, e a vida cristã ordinária, para o povo de Deus.
Já na era contemporânea, no
Concilio Vaticano II, com a chamada universal à santidade cristã (cf. Lumem Gentiun, cap. V, n.39-42), a
distinção entre um caminho ordinário e outro místico (extraordinário) foi
anulado. Tomas Merton, entre outros
espiritualistas, insistia muito sobre o “caminho contínuo” que todo cristão é chamado a seguir, na vida espiritual. Ele
dizia que “para alcançar uma verdadeira consciência de Deus e de nós mesmos,
devemos renunciar ao nosso ser egoísta e limitado e entrar em uma espécie de
existência totalmente nova, descobrindo um centro interior de motivação e de
amor que nos permita de ver a nós mesmos e todas as coisas em uma luz
totalmente nova. Chamá-la fé, chamá-la – em uma fase mais avançada – iluminação
contemplativa, chamá-la sentido de Deus ou também união mística, tudo isso são
aspectos e níveis diferentes da mesma espécie de realização: o despertar de uma
nova consciência de nós mesmos em Cristo, criados n’Ele, redimidos por Ele, para
sermos transformados e glorificados em e n’Ele”.[4]
Em São Paulo, podemos encontrar esta mística que se expressa em uma nova
consciência ou visão teológica ( cf. Ef. 1,3-14; Col. 1,1-20).
Em uma de suas orações, o
cardeal J. H. Newman expressa aquilo que podemos considerar os frutos da fé e
da vida mísitca: “Eu creio e sei que todas as coisas vivem em Ti. Tudo quanto
existe no criado de ser, vida, perfeição, alegria, felicidade, é na sua
substância, simplesmente e absolutamente teu. É imergindo-se no oceano da tua
infinita perfeição que todos os seres portam quanto têm de bom. Tudo o que é
maravilhoso quanto a talento ou gênio não é mais que um pálido reflexo do mais
frágil raio da Mente Eterna. Tudo o que nós conseguimos fazer de bem não é
devido somente à Tua ajuda, mas também à imitação daquela santidade que em Ti
encontra a sua plenitude. Virá, meu Deus, o dia em que poderei ver-Te? Poderei
ver a fonte daquela graça que me ilumina, me reforça e me consola? E, como tive
origem de Ti, como sou criado de Ti, como vivo em Ti, possa eu enfim retornar a
Ti, e permanecer contigo nos séculos dos séculos”[5]. Nesta perspectiva, pode-se
afirmar que a fé e a mística caminham juntas; elas são nossas companheiras de
viagem rumo à plenitude da vida, em Deus. Assim, podemos concluir dizendo que a fé fortalece a vida mística e
vice-versa visto que através delas o cristão entra num processo de crescimento
humano e espiritual integral (hic et nunc),
guiado pelo Espírito Santo, que o conduz à união com a vida trinitária, já
neste mundo, e o encaminha para plenitude do reino dos céus.
Padre Anisberto Bonfim, smbn
[1] Cf. FATULA M. A. Fede, in Nuovo Dizionario di Spiritualità, Libreria Editrice
Vaticana, Cità del Vaticano 2003, 298-309.
[2] Cf. J. A. Wiseman, Mistica, idem, p.450-460.
[3] Cf. S. de Fiores, “La spiritualità come esperienza di Dio”, in Nuovo Dizionario di
Spiritualità, Ed. Paoline,
Roma 1999,1528
[4]
Cf. T. Merton, Contemplation in a
World of action, Garden City [N.Y.] 1973, p.175-176).
[5] B. V. FERRER, Livro de oração de Newman, 1990,13.
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